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A BUSCA POR “PRINCÍPIOS” E DESASTRES CONVENIENTES

  • Tradução e adaptação de Randal Fonseca
  • 15 de dez. de 2023
  • 18 min de leitura
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David Etkin, Diretor do Programa de Pós-Graduação Desastres e Gestão de Emergências, Faculdade Atkinson, York University



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Ian Davis, professor em Gestão de Emergências, Cranfield, Universidades Coventry, Oxford Brookes e Kyoto




NOTA DO EDITOR: esta materia foi traduzida por Randal Fonseca. Foram feitas adaptações lexicais de expressões do idioma português para coadunar com a linguagem da disciplina Gestão de Emergências 2023. O texto original em inglês, foi escrito em 2007.


ENQUADRAMENTO


1. POR QUE PRINCÍPIOS SÃO NECESSÁRIOS PARA GESTÃO DE EMERGÊNCIAS?

O dicionário Oxford define um princípio como uma "verdade fundamental como (a) base de raciocínio". " Os princípios orientam as decisões e ações, políticas e procedimentos das pessoas, desenvolvidos pelas organizações, leis e doutrinas das entidades políticas". O Collins English Language Dictionary define ainda princípio como:


“Uma regra geral que se tenta obedecer da mesma maneira com que tenta alcançar algo.” “Ações ou comportamentos baseados em orientações claras sobre a forma de agir."


Essas definições de “princípios” colocam ênfase na autoridade implícita ao postulado para ser introjetada como uma "verdade fundamental" ou "regra geral". Em síntese, o propósito de um princípio não está direcionado à forma de pensar, mas diz respeito a formas de agir, para "orientar ações práticas", "realizar alguma coisa" ou para definir a "maneira de atuar".


A afirmação "Consideramos essas verdades evidentes..." (Constituição U.S. – Thomas Jefferson) é um dos princípios. Se não houver uma compreensão clara e uma determinação óbvia de princípios, então não poderá haver uma estratégia consistente, coesa ou uma comunicação eficaz entre organizações abraçando o que se busca definir como gestão de desastres.


Há um incentivo atual para se desenvolver princípios orientadores com vista a tomadas de decisões no âmbito da gestão de emergências e recuperação de desastres, pois essas duas expressões resultam de concepções externas (1) à Ciência das Emergências definidas por organizações governamentais, doadores e Instituições Financeiras Internacionais. Em troca de apoio aos países em desenvolvimento que precisam de subvenções e empréstimos após desastres, essas instituições estão cada vez mais a exigir melhor atenção aos beneficiários da assistência e requerendo mais transparência geral nas operações – especialmente na gestão financeira. Para que essas demandas em âmbito internacional sejam cumpridas, os princípios éticos são estabelecidos para dar suporte às políticas e práticas. No campo da “gestão de emergências e desastres” há uma infinidade de princípios (CRHNet 2005) descritos em vários livros (por exemplo, Alexander, 2002) e sites organizacionais (por exemplo, Oito Princípios de Gestão de Emergências). Esses oito princípios pretendem fornecer uma base norteadora e duradoura para a forma como a gestão de emergências e recuperação de desastres é colocada na prática. No entanto, outros conjuntos de princípios revelam ter pouca relevância. Por que isso acontece? Quais são as implicações dessa diversidade de princípios? Os autores sugerem que a divergência emerge por três razões básicas.


A. Essa primeira diz respeito a diferenças nos “valores fundamentais” e nos mandatos organizacionais. Por exemplo, uma ONG como o CICV (www.icrc.org) Comitê Internacional da Cruz Vermelha ou a CARE (www.care.org/pt); atuam ambas em âmbito mundial dedicadas a salvar vidas, combater a pobreza e buscar a justiça social, captar e distribuir doações, dentre outras atividades descritas nos respectivos websites. Essas ONG buscam trazer esperança, inclusão e justiça social. Têm objetivos abrangentes, como a erradicação da pobreza e trazer meios políticos e financeiros para que todas as pessoas possam viver com dignidade e segurança. Essas organizações têm forte foco na assistência em nível comunitário, mas sem compartilhar os mesmos valores ou propósitos do Banco Mundial, por exemplo; que por seu lado tende a trabalhar em nível internacional e nacional com outra abordagem, embora a gestão de emergências e recuperação de desastres seja importante para ambos. As culturas dessas ONG são bem diferentes, uma tem suas bases estatutárias voltadas a assistência humanitária, enquanto a outra atua em um ambiente econômico altamente politizado, onde o desenvolvimento tem sido tradicionalmente visto pela perspectiva da economia neoclássica. Outras diferenças podem estar relacionadas à disciplina. Por exemplo, uma agência meteorológica, como o iCS – Instituto Clima e Sociedade, uma organização filantrópica que apoia projetos e instituições voltadas ao fortalecimento da economia e posicionamento geopolítico, além de estudos dedicados a reduzir a desigualdade por meio do enfrentamento das mudanças climáticas e soluções sustentáveis. A Defesa Civil, um órgão da Secretaria Especial de Defesa Civil, tem tecnologia para dar alertas à população, antecipando um evento climático, enquanto uma agência de desenvolvimento pode concentrar em ações sustentáveis para um grupo social.


B. A divergência existe porque diferentes pessoas ou organizações abordam a gestão de emergências e recuperação de desastres por perspectivas operacionais próprias. Um acadêmico pode ser filosófico, uma agência governamental pode ser estratégica, enquanto uma operação tática pode estar baseada em buscar o alívio. Desta forma, os princípios que deveriam estar a refletir seu propósito pessoal ou organizacional, seriam bastante distintos, embora sem que promovesse conflito entre seus objetivos. Por exemplo, o primeiro dos oito princípios do Site de Filantropia é "Não faça mal", enquanto o primeiro princípio de Auf der Heide (1989) é "Devido aos recursos limitados disponíveis, as propostas de preparação para desastres precisam levar em consideração o custo-efetividade." Esses dois princípios têm pouca relação entre si, embora os defensores não se oponham à afirmação de um e do outro.


C. Pessoas e organizações podem estar dedicadas a diferentes etapas da gestão de emergências (mitigação, preparação, resposta e recuperação). Cada uma dessas "etapas" tem requisitos próprios que resultam em diversificadas preocupações e estratégias. Além dos aspectos mais idealistas dos mandatos organizacionais está, muitas vezes, a tendência não declarada das organizações em garantir a própria sobrevivência e crescimento, às custas de pautas que incluem “ajudar as vítimas de desastres de forma ideal”. É possível destacar inúmeros exemplos de discursos em que se revelam esses interesses próprios. Por exemplo, após o Tsunami Asiático de 2004, agências nacionais e internacionais entraram nos países afetados e embarcaram em campanhas de financiamento energético, muitas vezes em concorrência com outras agências, embora tenha logo ficado evidente para todos que no sistema de ajuda estava uma infinidade de agências concorrentes – e que ultrapassava em muito as necessidades locais. Também ficou evidente que muito mais dinheiro havia sido coletado do que poderia ser gerido, dadas as capacidades locais limitadas ou os canais de financiamento disponíveis. Além disso, houve uma falta de cooperação acentuada entre as centenas de ONGs que lá estavam para ajudar as vítimas do desastre. A partir dessa situação caótica, sucessivas avaliações têm destacado a necessidade urgente de que algum consenso seja alcançado a partir dos princípios acordados. Isso permite que as agências sintonizem na mesma partitura musical. Sem essa cooperação, será lícito esperar mais cenários, como o circo das ONGs Sri Lanka de ações descoordenadas de centenas de organizações nacionais e internacionais, onde cada uma declaradamente buscava alcançar objetivos individuais.


O risco é que esse padrão se repita em todos os mega desastres futuros que atraem a atenção de um número significativo de agências. A disputa das agências por projetos se aplica igualmente na concorrência para garantir a atenção da mídia. Clinton, (2006); Scheper (2006); Telford e Cosgrave (2007). Outros exemplos de disputas por território político foram constatados nas fases durante e pós-desastre do furacão Katrina, que dificultou a pouca resposta efetiva do EUA. Em síntese, organizações não governamentais são empreendimentos monolíticos – com agendas concorrentes e prioridades internas que existem, inevitavelmente, mesmo em desastre (2).


Essas questões de auto interesse das agências que se tornam preocupações dominantes destacam a necessidade contínua de reorientar princípios que colocam em prioridade a missão primária das agências humanitárias que devem estar fundamentadas exclusivamente nas "necessidades da comunidade afetada" em vez de qualquer outra consideração de interesse interno. Esta foi a motivação precisa da iniciativa do grupo “Boas Doadoras Humanitárias (2003) e da Comissão Internacional da Cruz Vermelha quando pela primeira vez promoveu o ‘International Code of Conduct' em 1995.


Em fevereiro de 2007, um total surpreendente de 404 agências nacionais e internacionais assinaram o Código, o que significa que respeitariam as condições ou princípios: "Código de Conduta nº 1.

O imperativo humanitário vem em primeiro lugar. O direito de oferecer e receber assistência é um princípio humanitário fundamental que deve ser apreciado por todas as pessoas em todos os países....


Código de Conduta nº 2. A ajuda humanitária é dada independente da raça, credo ou nacionalidade e sem distinção de qualquer tipo. As prioridades de auxílio são calculadas apenas com base na necessidade. Sempre que possível, basearemos a ajuda humanitária em uma avaliação minuciosa das necessidades das vítimas do desastre e das capacidades locais já em vigor para atender a essas necessidades. Dentro da totalidade de nossos programas, refletiremos sobre as condições de proporcionalidade. O sofrimento humano deve ser aliviado sempre que for encontrado; a vida é tão preciosa em uma parte de um país como em outra. Assim, nossos auxílios refletirão o grau de sofrimento que buscamos aliviar. Ao implementar essa abordagem, reconhecemos o papel crucial desempenhado pelas mulheres em comunidades propensas a desastres e garantiremos que essa atribuição seja apoiada, não diminuída, por nossos programas de ajuda. A implementação de uma política universal, imparcial e independente só pode ser eficaz se nós e nossos parceiros tivermos acesso aos recursos necessários para prover esse alívio equitativo e ter acesso igual a todas as vítimas de desastres."


No entanto, dado aos altos níveis de rotatividade de funcionários das ONGs internacionais, é possível que iniciativas como a Boa Doação Humanitária ou o Código de Conduta possam ser totalmente desconhecidas para novos funcionários. Em 2007, Ian Davis, então consultor de uma das maiores ONGs globais (que está a desenvolver uma estratégia internacional para orientar seu programa humanitário global), em discussões variadas dentro de um documento sobre preocupações éticas observou que havia total ausência de qualquer referência ao Código de Conduta, apesar de esta agência ter sido uma das primeiras signatárias, a concordar em cumprir os requisitos do Código. Investigações posteriores indicaram que isso se dava porque os funcionários-chave desconheciam a existência do Código e do acordo de as agências respeitarem seu conteúdo.


Drabek (2005) apresentou outra razão pela qual o campo da Gestão de Desastres (designação ainda vigente no início do século 21) não tem um conjunto de princípios bem-definido, e isso porque não há uma teoria geral por trás para dar sustentação. Drabek argumentou ainda que aspectos de teorias, como os provenientes da construção social, do desenvolvimento sustentável e da teoria da vulnerabilidade, são referências que podem ser usadas como base para dar suporte à teoria da atual disciplina Gestão de Emergências, mas que na época ainda estava em um estágio de desenvolvimento. Ao longo de uma linha semelhante, Alexandre (1999) observou que "modelos e interpretações de desastres abundam, mas o fenômeno é tão multifacetado que uma teoria geral para explicação universal é improvável de ser formulada"


Os autores propunham que o âmbito da gestão de emergências se beneficiaria muito tendo um diálogo sobre o tema dos princípios, com o objetivo de criar um grau de convergência. Assume-se haver três razões pelas quais um corpo de princípios é necessário:


1º Permite que as organizações criem conjuntos coerentes de políticas de procedimentos.


Isso ajudaria instituições com valores e mandatos diferentes para que pudessem melhor entender e conversar umas com os outras. Mas, além desse postulado, se princípios claramente definidos forem aceitos e acordados entre diferentes organizações, então é possível que a cooperação e coordenação genuínas ocorram com base em consenso.


2º Os princípios podem fornecer uma base de ação acordada e ética.


É essencial enfatizar a dimensão ética em todos os aspectos da gestão de emergências e recuperação de desastres, uma vez que a vida das pessoas e a viabilidade das comunidades estão em jogo. Os princípios podem permitir que os tomadores de decisão diferenciem entre questões éticas relativas e questões éticas universais (há uma discussão sobre a distinção). Os princípios éticos formam a base para auxiliar os tomadores de decisão à medida que buscam, (ou são empurrados) a se tornarem responsáveis pelos beneficiários de seu apoio, bem como ao se tornarem transparentes no tratamento de suas operações e na gestão de suas finanças.


3º Os princípios são para orientar os elementos de planejamento e implementação de ações.


Os princípios podem auxiliar o desenvolvimento de políticas, estratégias, planejamento de táticas em ações de campo, bem como melhorar o aprendizado e a recuperação de desastres. É essencial planejar a recuperação de desastres em todos os países, mas sem que exista uma orientação por princípios, a gestão de emergências e recuperação de desastres pode ser pouco mais do que uma mera formalidade. Há uma abundância de princípios para orientar os gestores, e cada um desses "princípios relativos, ou localmente aplicáveis" pode ser adaptado para adequar ao objetivo de uma organização. É importante reconhecer que, embora alguns princípios possam ser seguidos de forma consciente, outros podem ser de forma inconsciente. Alguns princípios são explícitos enquanto outros se dão implicitamente às operações.


Uma parte importante da essência de qualquer princípio útil está em sua simplicidade, mas emergências e desastres são sempre eventos complexos que se relacionam com riscos variados que afetam múltiplas partes interessadas, muitos níveis da tomada de decisão e diversos setores geridos por uma série de ministérios e departamentos. Assim, os princípios simplificam (ou simplificam excessivamente) nuances sutis e demandas variadas. No entanto, apesar dessa complexidade inerente, continua a ser essencial orientar as pessoas que precisam agir de forma decisiva e positiva: ou seja, as variáveis complexas precisam princípios simples, diretos e de fácil compreensão para efetivamente auxiliar o processo.


2. A BASE ÉTNICA PARA PRINCÍPIOS

A gestão de desastres era interpretada como uma resposta ao sofrimento humano e às perdas dos meios de subsistência e dos ativos das pessoas, enquanto a gestão do risco de desastres tinha o propósito de prevenir ou mitigar tais perdas; os processos eram antropocêntricos. As pessoas se envolvem em ações humanitárias porque acreditam que é a "coisa certa a se fazer", e, portanto, este campo está intimamente ligado à ética e à moralidade. Ética não tem sido sobre o que é; em vez disso, tem descrito sobre o que deve ser. Teorias éticas utilizam princípios ligados a normas de conduta da sociedade para avaliar e justificar ações e comportamentos. Nesse sentido, são postulados prescritivos e normativos (descrevendo o que deveria ser) em oposição ao que deve descrever “o que é” (embora se espere estejam ligados).


A base para um conjunto de princípios da gestão de emergências e recuperação de desastres pode estar no contexto de um contrato social, entre o governo e seus cidadãos, ou sobre a teoria moral (Zack, 2006). Um contrato social se baseia na ideia de que o propósito do governo é tornar a vida melhor para seus cidadãos, e para isso eles concordam em ser governados. As principais questões que precisam ser abordadas a partir dessa perspectiva, segundo Zack, são "O que os governos devem aos cidadãos em situações em que o governo é temporariamente disfuncional?”, e "Que responsabilidades ele tem em termos de preparação para desastres? " Respostas variadas são possíveis, dependendo de fatores, como se estamos diante de uma propriedade pública ou privada, ou o grau de risco que os cidadãos devem aceitar para viver em áreas perigosas, ou o grau em que um governo aceita a complacência como princípio operacional. Um contrato social seria baseado em uma teoria da justiça social (por exemplo, "Uma Teoria da Justiça" de John Rawles), que seria baseada: (1) na justiça distributiva ou (2) na justiça retributiva. O primeiro é baseado em uma distribuição justa de bens, recompensas ou benefícios. Isto é particularmente importante para a questão da compensação e recuperação de desastres. O segundo se baseia na punição de ações erradas e enfatiza processos justos, julgamentos justos e sentenças proporcionais. Essa abordagem tem uma longa história na sociedade; um exemplo seria processar um empreiteiro que construiu uma casa com falhas cujo resultado foi ter sido danificada por um desastre.


Existem dois tipos principais de teorias morais. O primeiro, chamado relativismo ético, afirma que a moralidade varia entre pessoas e sociedades de acordo com suas normas culturais. O segundo, chamada teorias morais universalistas ou objetivistas, afirma que existem princípios objetivos e fundamentais que não sofrem variações ao longo do tempo e do espaço. Ambos os tipos de teorias têm pontos fortes e fracos. Por exemplo, o relativismo cultural sugere (levado ao extremo) que se deve aceitar assassinatos da limpeza étnica, simplesmente porque outro grupo cultural o aceita como sua norma cultural. A maioria das pessoas, e certamente os autores, acham isso repugnante. Alternativamente, desconsiderar valores de outras culturas, mesmo paternalistamente, pode levar a consequências não-intencionais e negativas (por exemplo, Jigyasu, 2005). Um exemplo de um princípio ético "relativo" na gestão de emergências e recuperação de desastres poderia ser o seguinte:


"Antes que sejam tomadas decisões e ações que aumentem ou diminuam os riscos enfrentados por um determinado grupo social, os servidores públicos precisam consultar de forma veemente as pessoas que estão em risco ou seus representantes e “preparar recursos” levando em conta a opinião local."


Dentro das democracias ocidentais, é provável que haja um acordo geral sobre o princípio acima, com a possível exceção das pessoas que detêm visões políticas “de cada um por si”. Além disso, a maioria das pessoas provavelmente assumiria que o princípio descrito acima é universalmente aplicável em vez de ser meramente relativo. No entanto, colocamos esse princípio na categoria relativa, uma vez que existem muitas sociedades, como China (ou possivelmente) Cuba onde o"direito" de ser ouvido ou consultado em questões de política pública não faz parte da ideologia dominante ou de um processo operacional razoável.


Outro exemplo diz respeito à desocupação de áreas diante de uma ameaça ou de impacto iminente. Por exemplo, nas culturas democráticas ocidentais a desocupação de áreas diante da iminência de desastres é voluntária e, muitas vezes ineficaz, em contraste com sociedades planejadas, mais controladas, como Cuba, onde a ordem de desocupar áreas não é uma opção e, portanto, altamente eficaz. Um exemplo comum do choque de princípios diferentes diz respeito à colisão entre o pensamento progressista e os tradicionais entrincheirados. Um dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) já prescrevia a respeito de garantir a igualdade de gênero até o ano de 2015. Sem dúvida, esta aparecia como uma intenção nobre, mas qual a chance dessa aspiração ser concretizada, dada a normas culturais e religiosas dominantes em algumas culturas? Essa questão inevitavelmente provocou e ainda provoca controvérsia social, uma vez que todo o processo de desenvolvimento e aplicação de princípios cresce a partir de valores e atitudes que, inevitavelmente, entram em conflito com outros conjuntos de valores. Mas - em um mundo pluralista a maioria concordaria que a busca por princípios nunca deve se tornar simplesmente um “sermão” patriarcal, mas deve sim estar baseada, pelo menos em parte, em uma compreensão pragmática e aceitação de sistemas de valores diferentes. Isso sugere um reconhecimento importante da diferença entre as sociedades que já estão sob uma ética descritiva, e as que estejam sob uma ética normativa.


Um exemplo de um princípio ético "universal" na gestão de emergências e recuperação de desastres (embora muitos governos estão a violar essa noção) pode ser o seguinte:


"As pessoas têm o direito fundamental à segurança e isso é obrigação indiscutível, pois todos os governos devem garantir que seus cidadãos estejam protegidos em um grau razoável de riscos conhecidos, e que todos os cidadãos sejam informados e alertados pelos servidores sobre quaisquer riscos conhecidos que ameacem a segurança pública."


Dunfee (2000) sugere vários princípios considerados universais (ou hipernorms):

✓ Respeitar a dignidade humana, como direito fundamental à vida e subsistência.

✓ Condenar a corrupção no setor público

✓ Obrigar a respeitar a autonomia humana


Existem diferentes tipos de teorias morais objetivas (Chefe, 2005), incluindo o utilitarismo/ consequencialíssimo (maximizando alguma utilidade, como a felicidade, considerando os resultados das ações – como quando a felicidade venha a se tornar espinhosa, que enfatizam os deveres e direitos (deontologia), e as que se concentram em ser virtuosas em caráter e intenção. Diferentes teorias morais podem resultar em estratégias da gestão de emergências e recuperação de desastres muito diferentes do que se esperaria dentro dos princípios aceitos. Considere a assistência financeira a desastres como um exemplo. Se alguém basear essa estratégia em uma ética utilitária, enfatizando a recuperação ainda na fase pré-desastre, então um programa baseado nessa antecipação remanejaria os recursos das sociedades para todas as vítimas, conforme necessário. No entanto, baseando na perspectiva libertária sobre os direitos individuais a abordagem pode ser muito diferente e contar com doações voluntárias de caridade para ajudar vítimas dos desastres. Essa divergência é muito evidente no debate sobre mudanças climáticas extremas, onde alguns grupos (ambientalistas e climatologistas, por exemplo) defendem a redução obrigatória das emissões de gases de efeito estufa, enquanto outros (muitas vezes financiados pela indústria petrolífera) defendem reduções voluntárias (Etkin, 2007). A ética da virtude, ética de dever e consequencialismo utilitários são todos importantes para a gestão de emergências e recuperação de desastres.


Algumas pessoas sempre realizarão atos virtuosos, particularmente na etapa da resposta; muitos indivíduos têm deveres com outras pessoas, como os pais com seus filhos e os socorristas com suas vítimas; e as consequências das ações precisam ser consideradas, como garantir a eficiência e eficácia na alocação e qualidade dos recursos. A ética da virtude enfatiza o direito de estar sobre a ação certa, e ainda mais, sobre a qualidade geral da bondade, do que apenas uma lista de traços, como determinação, abnegação, coragem, honestidade. Aristóteles e Confúcio são exemplos de filósofos que acreditavam na ética da virtude.


Exemplos de deveres incluem: (W.D. Ross's Seven Prima Facie Duties):

1. Beneficência – o dever de fazer o bem e promover a felicidade

2. Não-eficiência – o dever de não fazer mal e prevenir danos

3. Fidelidade – deveres decorrentes de compromissos e promessas passadas

4. Reparação – deveres decorrentes de danos passados

5. Gratidão – deveres baseados em favores passados e serviços não merecidos

6. Autoaperfeiçoamento – o dever de melhorar nossos conhecimentos e virtudes

7. Justiça – o dever de dar a cada pessoa igual consideração

8. Justiça retributiva – punição por irregularidade

9. Justiça distributiva – distribuição justa de benefícios e encargos


Cada tipo de teoria moral tem seus pontos fortes e fracos.

A filosófica ética da virtude é criticada por ser incompleta e não fornecer orientação suficiente para se tomar decisões na vida real. No entanto, a moralidade tem uma feição pessoal. A deontologia (3) coloca a importância do dever e da justiça, e ações assertivas, mas não incorpora questões de sentimento e cuidado. O utilitarismo nos desafia a analisar criticamente os valores morais tradicionais e a considerar os resultados, que podem ser críticos. Mas se considerarmos apenas as consequências, ignorando questões importantes, como integridade e responsabilidade, e objetivos que não sejam uma utilidade escolhida como o “prazer”. Alguns filósofos argumentam que devem ser feitas escolhas entre as diferentes teorias morais, mas (4) para os autores parece razoável que todos os três sejam relevantes para a gestão de emergências e recuperação de desastres e que uma abordagem combinada deve ser usada.


Historicamente, a teoria moral se concentrou principalmente nos deveres. Por exemplo, a sociedade feudal era fundamentada na reciprocidade – nos conjuntos de obrigações mútuas onde os deveres eram primordiais - o vassalo para o Senhor e o Senhor para o seu vassalo. A noção de "nobreza oblige (5)" também se baseia no dever, na qual com poder e privilégio vêm a responsabilidade (para os menos afortunados). A sociedade ocidental atualmente enfatiza os direitos em uma medida muito maior (por exemplo, as declarações constitucionais de que as pessoas têm direitos inalienáveis). A noção de que direitos e deveres precisam ser vinculados é forte, na qual os direitos são derivados de deveres (Chefe, 2005). A alternativa vem da teoria dos direitos naturais (como expressa por John Locke), que diz que ter direitos não implica deveres para com os outros. United States (6)


Está além do escopo deste artigo examinar diferentes tipos de teorias morais em detalhes e como elas se aplicam à gestão de emergências e recuperação de desastres (o leitor JGE neste paper, é referido a Zack, 2006 ou Dunfee, 2000 para saber mais). Ter uma visão clara dos princípios éticos que fundamentam as estratégias da gestão de emergências e recuperação de desastres melhorará a comunicação que é a essência para coordenar diferentes agências e organizações. Um exemplo é ter a interoperabilidade de telecomunicações para garantir o compartilhamento de informações de forma consistente. É comum que as organizações considerem serem confidenciais os dados que reuniram – mas a decisão de não compartilhar informações pode tornar a recuperação de desastres muito mais difícil, tediosa e menos eficaz. A troca de informações é um processo que beneficia a todos, em oposição a uma que busque isoladamente beneficiar as vítimas. Uma vez que os valores de uma organização tenham sido claramente articulados, o compartilhamento de informações seria então aprimorado. Outras trocas podem ser muito menos claras e muito mais tortuosas. Por exemplo, Wall (1998) em seu livro “Crimes de Fome” discute como a prática do humanitarismo na África, embora muitas vezes praticada com nobres intenções, dificultou a implementação do contrato social para desenvolver uma sociedade resiliente a desastres.


3. A COMPLEXIDADE DOS PRINCÍPIOS ATUAIS Uma pesquisa na internet usando a frase "gestão de emergências” resultou em 168 milhões de acessos; "Princípios da gestão de desastres" resultou em 18 milhões de acessos. Fica evidente que esses termos estão em uso com diferentes aplicações. Para se ter uma noção da variância dos princípios declarados, os autores selecionaram 15 fontes de forma bastante arbitrária, incluindo vários sites e livros governamentais e de ONGs. Os princípios declarados variaram muito em número, perspectiva e profundidade. Alguns foram compostos de declarações curtas, às vezes incorporados em documentos longos (por exemplo, o Projeto de Lei de Gestão de Desastres da República da África do Sul), enquanto outros entraram em profundidade considerável e foram multi-hierarquizados (como: The Wingspread Principles: A Community Vision for Sustainability and Gujarat State Disaster Management Policy) Algumas declarações enfatizaram valores e ética (South Asia: Livelihood Centered Approach to Disaster Management – a Policy Framework) enquanto outras foram mais orientadas para a gestão (Erik Auf Der Heide: Resposta a Desastres: Princípios de Preparação e Coordenação). Esses exemplos embasam a noção de que o domínio do saber da disciplina Gestão de Emergências está difuso e confuso e, portanto carece de uma abordagem coesa, em termos de princípios.


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Foto cortesia CARE: Derna, Líbia 2023



NOTAS

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(1) Em anos anteriores (N.T) esses termos eram amplamente aceitos. 'Gestão de Desastres' referia-se ao gerenciamento pós-desastre e de emergências, enquanto 'Gerenciamento de Riscos de Desastres' descrevia os processos proativos de avaliação e redução de riscos. A expressão Gerenciamento de Recuperação de Desastres' descrevia a recuperação de desastres a longo prazo e, atualmente está sendo adicionado a essas descrições à medida em que a recuperação de desastres busca garantir o reconhecimento tardio entre os formuladores de políticas e instituições de financiamento.

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(2) Ian Davis estava no management board de uma agência de ajuda internacional durante a década de 1970 e testemunhou a ação dessas forças do interesse próprio. Ele lembra graves discussões na sala de reuniões onde o diretor financeiro da agência expressaria a 'necessidade' de ocorrer um grande desastre dentro de um determinado ano financeiro para produzir o consequente influxo de fundos de apoiadores da agência para garantir que as demissões de pessoal não ocorreriam. Isso foi por causa de um 14 - 20% de alocação de encargos administrativos e de manejo que a agência deduziu de cada contribuição a desastres, desde as "reduções de aportes financeiros" que ocorreram, comprometendo os fundos necessários para preencher o orçamento das agências. Portanto, como membros do conselho, fomos confrontados com a realidade contundente que, se houvesse poucos desastres em um determinado ano a agência teria que reduzir o pessoal e requisitos administrativos essenciais. No entanto, alguns mecanismos de "contabilidade criativa" foram introduzidos por certas agências para compensar esse risco, cobrando duvidosamente dos salários dos funcionários da administração local ou no exterior como um projeto de ajuda ou item de doação, de maneira a impulsionar a administração 'top-slice'. Desnecessário dizer, leais apoiadores eleitorais de agências nunca foram informados sobre essas sutilezas como a agência 'ajustando', (ou processando dados) suas contribuições apoiadoras para atender requisitos internos da agência.

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(3) A deontologia é regida pelos princípios éticos em vigência na sociedade (ZUBIOLI, 2004). - Ética: do grego, ethos significa conduta humana de acordo com os costumes. Dessa forma Ética e Moral são os maiores valores do homem livre. Ambos significam "respeitar e venerar a vida" (JORGE, 2003; VÁSQUEZ, 1998).

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(4) A importância do cuidado e do sentimento tem resultado da incorporação do feminismo na teoria moral.

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(5) Noblesse oblige significa, à letra, "nobreza obriga". Esta expressão é utilizada quando se pretende dizer que o fato de se pertencer a um grupo ou família de prestígio, ou de se ter uma certa posição social, ou um nome honrado, ou famoso, obriga a proceder de uma forma adequada, à altura do nome ou cargo que se tem. _________________________________________________________________________________________________________ (6) Um exemplo disso é se ou não prestar assistência às pessoas em desastres está ligado a tomar precauções razoáveis para mitigar seus riscos. Por exemplo, se alguém conscientemente constrói em uma zona de inundação quando tem opções alternativas, terá o direito à compensação em caso de uma inundação desastrosa?






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